quinta-feira, 29 de maio de 2008

O pai ideal

Pai,
Há muito não escrevo nada pra vc. Já coloquei no papel dezenas de palavras doces com certa fragilidade. Já as ordenei em outros de maneira vil e cruel. Mas hoje, senti uma enorme vontadede "falar" com vc. E de dizer outras palavras que não as que sejam complicadas. Palavras simples apenas. Ao assistir uma entrevista do Bial, e ele fazendo uma breve referência ao pai, me identifiquei. Ele falou sobre a música que lembrava a infância dele. Acordes africanos nunca antes ouvidos por qualquer pessoa. Mas ele foi apresentado àquele som, quase etéreo, pelo pai. Um louco alemão que lia Goethe em voz alta, no original, na sala de casa. Aos poucos, o jornalista dizia o quanto foi bacana a emancipação feminina, a generosidade de deixar o homem sentir-se pai. E contou como o pai dele se mostrava tímido a um toque.
E concluiu: "Eu tenho pena do carinho que ele não soube me dar e do carinho que eu não soube transmitir a ele".
E por alguns instantes me peguei pensando na força dessa imagem, dessa frase. E também senti essa pena. De mim. De nós.
E estas palavras aqui não são de cobrança ou de incompreensão.
Hoje compreendo tantas coisas e as aceito. Mas rejeito em mim o ato de não amar incondicionalmente e de não expôr esse sentimento. Quando me lembro da minha infância, uma das cenas mais recorrentes estava vc. Me recordo com saudade das tardes que passava numa cadeirinha de palha ouvindo os discos novos que vc levava para casa. Com vc aprendi a gostar de Beatles, a querer entender a musicalidade do silêncio que pairava entre nós. Em breves momentos, me sentia tão íntima, tão capaz de ouvir seu coração. E ouvia o meu descompassado esperando algum minutinho para dizer eu te amo.
E como nós perdemos tempo na vida!
Todo dia, toda hora.
Depois de tantas batalhas e quedas e tropeços sei que faz parte de mim essas lembranças. E de como me tornei forte o bastante para não sentir o peso da vida adulta que foi chegando tão rápida e sorrateira.Quando falo de vc para os meus amigos, tenho um orgulho danado daquelas tardes. De como foram importantes na formação do meu caráter, da minha postura diante da vida. Da minha curiosidadepelo novo.
Ao perceber e reconhecer nossas diferenças, observo que por causa delas me tornei quem eu sou. E tenho ainda mais orgulho de mim mesma. A cada vitória conquistadapenso que parte de vc está aqui comigo. E mesmo distante me sinto confortável em imaginar que estou fazendo a coisa certa.
Não brincamos muito, não trocamos muitas palavras, não sabemos muito da vida um do outro, não temos a necessidade da presença aos olhos do corpo, é bem verdade, mas creio que aos olhos da alma estamos interligados.
Almas ora inquietas, estúpidas, chorosas, carentes. Almas ora felizes, risonhas, amáveis e afetuosas. Ao radiografar meus pensamentos vejo o quanto nossa relação me fez crescer. Tenho a sensação de que o mundo é pequeno em vista da giganteza do meu espírito de luta. Acho que já nasci predisposta a fazer deste mundo um lugar melhor. E conviver com vc todos aqueles anos me deu garra para ser livre. Me lembro de um fragmento de conversa na qual vc dizia que o mundo não era aquilo que eu esperava. Na hora, achava aquele papo de uma caretice sem tamanho. Mas agora percebo que vc estava certo.
O mundo aqui fora é diferente. Mas tratei de torná-lo divertido a meu serviço.
Obrigada pai, por todas as broncas, crises, cobranças.
Com medo de não atender suas expectativas, tratei de me tornar uma mulher íntegra, honesta, competente.
Para chamar sua atenção decidi não me rebelar como muitos o fazem. Para te orgulhar, tratei de fazer o melhor que podia. Hoje, olho para trás e vejo naquela longa estrada começada em 1972 um bom caminho. As pedrase xistiram.
Mas para quem anda descalço pela vida qualquer obstáculo se torna companheiro de jornada.
Decidi te contar tudo isso. Dividir com vc a alegria de pertencer ao seu DNA. Dizer um "Eu te amo" sincero em meio a banalização do amor e agradecer por vc estar vivo e ainda estar aí pra sentir orgulho de mim.
Eu venci!
Nós vencemos!
Que bom...

4 comentários:

Anônimo disse...

Nem li esse texto... Eu ia chorar horrores...
Mas, ó, atualizei.
Bezo.

Papo Prazer disse...

o contrário da pessoa acima...eu li, reli e, de fato, chorei horrores...e pior, estou no trabalho...só os seus textos p/ fazerem isso comigo em pleno expediente. E olha que não é a primeira vez que isso acontece, já devia ter aprendido! Enfim, família, família... nós duas sabemos bem o quão difícil e adorável é a relação pais e filhas..rs

Anônimo disse...

Ana Carolina,
li este texto e me emocionei muito. Me surpreendi ao perceber que todos esses anos de vida te fizeram uma mulher madura , sensível e que os tropeços da vida te serviram de aprendizados e nao de revoltas.
Quero te dizer e te dar a certeza , talvez vc nao se lembre ; mas eu sim; de que vc foi muito querida por todos da família. E que se a vida nos separou ,nao significa que nao tenha seu lugar guardado dentro de todos nós.
Sempre tive muita admiraçao e carinho por vc e por sua postura de respeito em relaçao a todos nós.
E hoje depois de ler este texto , te admiro ainda mais!!!
1 beijo com muito carinho

Tati disse...

Uma choradeira aqui. Minha. Daquela que te lê e que entende que esse tipo de amor indelicado. Indelicado pq não é feito de sutilezas, mas de exageros. E ainda assim, é amor!